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NÃO É BOM ESTAR SÓ
Gênesis 2.18

 

Então o Senhor Deus declarou: “Não é bom que o homem esteja só; farei para ele alguém que o auxilie e lhe corresponda”. [Gênesis 2.18]

 

Uma equação perigosa

A primeira vez em que prestei de fato atenção nesta declaração bíblica formulei uma equação que, à primeira vista, me soou esquisita: Deus + um homem = um homem sozinho.

Fiquei imaginando uma eventual cena caso Adão se aproximasse de Deus reclamando de sua solidão: “Muito bem, Deus, passei o dia dando nome aos animais e percebi que todos eles passaram em pares, macho e fêmea, e cada um saía em busca de um cantinho aconchegante onde se aninhavam de mansinho. Fiquei com uma tremenda inveja quando me dei conta de que para mim não existia par, e então me senti muito sozinho. Vim reclamar e, muito respeitosamente, apresentar minhas críticas ao universo que o Senhor criou. Está incompleto, falta alguma coisa. Tudo o que o Senhor fez não é suficiente. Ainda não está bom”.

Deus poderia responder furioso, fazendo com que Adão compreendesse que Ele mesmo, Deus, era seu par: “Que absurdo, você é tão estúpido que não consegue enxergar que o par do boi é a vaca, do cavalo é a égua, do cachorro é a cadela e que Eu, o Senhor Todo Poderoso, Criador dos Céus e da Terra, sou o seu par? Você não consegue enxergar que nós formamos o par perfeito? Você não consegue perceber que o único ser criado à minha imagem e semelhança é você, e que eu fiz você desse jeito porque desejava me relacionar em termos especialíssimos com uma pessoa além de mim mesmo? Ora, Adão, tenha a santa paciência...”.

Absurdo mesmo é esse diálogo entre Criador e criatura. Mas mais absurda é a afirmação de Deus a respeito da solidão do ser humano: “não é bom que o homem esteja só”. Acredito que, por trás dessa declaração, está a mais bela de todas as confissões de Deus e a mais elevada expressão de sua essência: Amor, que se traduz em abnegação, altruísmo, doação e auto-doação. Por trás dessa declaração feita por Deus, consigo enxergar o diálogo da comunhão da Trindade: “Nós não somos suficientes para a felicidade humana. Nós não bastamos para que o homem seja plenamente realizado no universo que criamos. Nossa insistência em reivindicar a exclusividade da dedicação e afeição do homem vai acabar condenando-o a uma infelicidade crônica e eterna. Precisamos tomar alguma providência”.

A insuficiência de Deus e a consequente solidão do homem geram a necessidade da criação da mulher. Assim diz o Gênesis: “Então o SENHOR Deus declarou: ‘Não é bom que o homem esteja só; farei para ele alguém que o auxilie e lhe corresponda’. Depois que formou da terra todos os animais do campo e todas as aves do céu, o SENHOR Deus os trouxe ao homem para ver como este lhes chamaria; e o nome que o homem desse a cada ser vivo, esse seria o seu nome. Assim o homem deu nomes a todos os rebanhos domésticos, às aves do céu e a todos os animais selvagens. Todavia não se encontrou para o homem alguém que o auxiliasse e lhe correspondesse. Então o SENHOR Deus fez o homem cair em profundo sono e, enquanto este dormia, tirou-lhe uma das costelas, fechando o lugar com carne.

Com a costela que havia tirado do homem, o SENHOR Deus fez uma mulher e a levou até ele. Disse então o homem: ‘Esta, sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada mulher, porque do homem foi tirada’. Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e eles se tornarão uma só carne. O homem e sua mulher viviam nus, e não sentiam vergonha” [Gênesis 2.18-25].

De fato, Deus + um homem = um homem sozinho. E isso não é bom, não é suficiente, não é o bastante. Demorou para que eu entendesse a afirmação de Deus. Tudo ficou claro quando consegui enxergar Deus como Pai, Filho e Espírito Santo, distinguindo as pessoas e crendo que me relaciono com um Deus em três pessoas distintas, porém iguais. Aí está o segredo. Deus é uma comunhão entre iguais. O ser criado à sua imagem e semelhança deveria necessariamente ser completo apenas e tão somente numa relação entre iguais.

Isso explica porque Deus disse que o homem estava só. O homem possuía alguém acima dele - Deus - e também abaixo dele - o restante da criação -, mas não possuía ninguém ao lado dele, como seu igual, e, nessa dimensão, estava sozinho.

Ariovaldo Ramos afirma que esta é a mais característica expressão da imagem de Deus no ser humano. Considerando que todo o universo está impregnado de Deus, podemos afirmar que a imagem de Deus está em todo o universo. Por outro lado, considerando que a Bíblia afirma que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, podemos depreender que

existe uma dimensão da imagem de Deus que apenas o ser humano consegue expressar, e essa dimensão é a unidade na diversidade, a capacidade de pessoas distintas se tornarem uma só.

 

Deus é uma comunidade entre iguais.

“Sob o nome de Deus a fé cristã vê o Pai, o Filho e o Espírito Santo em eterna correlação, interpenetração e amor; de tal sorte que são um só Deus uno. A unidade significa a comunhão das Pessoas divinas. Por isso, no princípio não está a solidão do Uno, mas a comunhão das três divinas Pessoas”. [Leonardo Boff]

 

O Deus bíblico é “essencialmente relacional. Esta é a diferença entre o monoteísmo trinitário cristão e os outros monoteísmos unitários, como o Judaísmo e o Islamismo.

Nestes, encontramos a solidão do Uno, de um Deus que não tem nenhum outro igual com o qual possa se relacionar. O Cristianismo é a única religião monoteísta que crê num único e indivisível Deus que se manifesta como uma Trindade de Pessoas. O Deus cristão e bíblico não existe solitariamente, ele é sempre a comunhão das três pessoas divinas”. [Ricardo Barbosa]

 

Pessoas precisam de Deus. Pessoas precisam de pessoas.

As duas afirmações: “pessoas precisam de Deus” e “pessoas precisam de pessoas” são igualmente verdadeiras e indissociáveis. Isso está demonstrado em toda a Bíblia. Moisés e Arão, Josué e Calebe, Davi e Jônatas são exemplos de relacionamentos de profunda amizade e espiritualidade.

O sábio Salomão afirmou:

É melhor ter companhia do que estar sozinho, porque maior é a recompensa do trabalho de duas pessoas. Se um cair, o amigo pode ajudá-lo a levantar-se. Mas pobre do homem que cai e não tem quem o ajude a levantar-se! E se dois dormirem juntos, vão manter-se aquecidos. Como, porém, manter-se aquecido sozinho? Um homem sozinho pode ser vencido, mas dois conseguem defender-se. Um cordão de três dobras não se rompe com facilidade. [Eclesiastes 4.9-12]

O compromisso de amizade celebrado entre Davi e Jônatas pode esclarecer o significado de “cordão de três dobras”:

E Jônatas disse a Davi: “Vá em paz, pois temos jurado um ao outro, em nome do Senhor, quando dissemos: O Senhor para sempre é testemunha entre nós e entre os nossos descendentes”.[1Samuel 20.42]

 

A necessidade de algo mais que um espelho

Considerando que somente o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus, uma pessoa sozinha tem apenas a si mesma como referência do divino. E quem tem apenas a si mesmo como referência do divino está a um passo de se confundir com o divino. E quem se confunde com o divino está a um passo de se tornar um demônio.

A melhor definição que encontro para demônio ou diabo é “ego absoluto”. Egos absolutos não podem ser contrariados, questionados, criticados, corrigidos, advertidos ou minimamente confrontados com suas faltas, imperfeições, incoerências e pecados.

Pessoas que não enxergam nada além de si mesmas estão demonizadas. Aqueles que não valorizam nada além de si mesmos tornam-se diabólicos. O diabo é isso, um ego absoluto.

Acredita que todo o universo deve existir ao seu redor e para o seu benefício. Olha para todos os outros seres como quem diz: “A única razão para você existir é fazer a minha vida melhor. Atender meus desejos, fazer minhas vontades, me fazer feliz”.

Egos absolutos caminham para a mais tenebrosa solidão. Pelo caminho do egoísmo e do egocentrismo vão aniquilando e descartando pessoas, até que ficam ilhados em si mesmos, presos no circulo estreito de seus próprios pensamentos e desejos mesquinhos. O inferno pode ser descrito assim: confinamento do eu em si mesmo.

 

Conselhos para quem não quer acabar na solidão

1. Aprofunde seus relacionamentos

O caminho da intimidade nos relacionamentos é a revelação das questões profundas da alma: sonhos, esperanças, frustrações, culpas, medos, ansiedades, enfim, a mais variada gama de sentimentos que povoam nosso mundo interior. Na verdade, a intimidade exige a troca de segredos.

O Senhor conta os seus segredos aos que o temem, e os leva a conhecer a sua aliança.

[Salmo 25.14]

A intimidade está para além da mera troca de informações. Por exemplo, quando você diz “estou doente e vou passar por uma cirurgia na quinta-feira, por favor, ore por mim”, compartilhou apenas informações. Mas quando diz “estou doente e acho que Deus está sendo injusto comigo, vou passar por uma cirurgia na quinta-feira, por favor, ore por mim”, ou “estou doente, vou passar por uma cirurgia na quinta-feira e estou com medo de morrer, por favor, ore por mim”, você abriu seu coração e convidou a outra pessoa para um nível mais profundo de intimidade com você.

 

2. Seja uma pessoa acessível

Os relacionamentos de intimidade nos protegem de nos tornarmos egos absolutos, isto é, nos protegem de cairmos nas garras do mal e nos tornarmos igualmente malvados.

Mas para que isso seja verdade é necessário que as pessoas ao nosso redor possam nos questionar, repreender, advertir, chamar nossa atenção àquilo em nós mesmos que passa despercebido aos nossos próprios olhos.

 

Triste é quando alguém comenta coisas do tipo: “fulano de tal não ouve ninguém”; “não adianta, ela sempre tem uma explicação para tudo”; “não adianta falar, quando ele põe uma coisa na cabeça ninguém consegue tirar”; “ele nem ouve, já começa a se justificar”. A respeito dessas pessoas, dizemos que não são acessíveis. Desobedecem uma recomendação bíblica:

Quem responde antes de ouvir comete insensatez e passa vergonha.[Provérbios 18.13]

Meus amados irmãos, tenham isto em mente: Sejam todos prontos para ouvir, tardios para falar e tardios para irar-se.

[Tiago 1.19]

 

3. Creia na cura pela palavra

Sigmund Freud foi um gênio. Seus conceitos de consciente, inconsciente e subconsciente são recursos valiosíssimos para explicar o comportamento humano. Em termos simples, Freud disse que todos somos habitados por memórias, pensamentos e sentimentos que determinam boa parte da maneira como vivemos. Mas o fato é que nem sempre temos

conhecimento de por que somos assim ou assado, ou agimos desse ou daquele jeito. Sua proposta foi interessante: falar sobre as coisas que povoam nosso mundo interior. Freud acreditava que enquanto falamos, gradativamente vamos tomando consciência daquilo a nosso respeito que desconhecíamos, e essa nova consciência que surge é uma fonte de

cura, senão a própria cura.

Acredito que é isso o que a Bíblia recomenda quando Tiago nos ordena a prática da confissão.

Portanto, confessem os seus pecados uns aos outros e orem uns pelos outros para serem curados.

[Tiago 5.16]

A confissão é uma coisa mais profunda do que simplesmente contar aos outros as coisas erradas que fazemos ou as certas que deixamos de fazer. A confissão vai também ganhando patamares mais profundos, e deixam de ser mero compartilhar de informações e vai se tornando uma revelação das sombras de nossas almas.

Quando pedimos perdão a Deus, somos perdoados. Mas quando confessamos nossas culpas uns aos outros, somos curados. A confissão mútua cura quando aquele que a ouviu nos acolhe, nos perdoa, sem nos julgar e condenar. Essa maneira como o amor de Deus ganha concreção em nossa experiência pessoal: os outros nos amam com o amor de Deus, o amor que perdoa e restaura.

 

4. Construa relacionamentos baseados no perdão

A maioria das pessoas constrói relacionamentos baseados na expectativa da perfeição. Mas todo e qualquer relacionamento de intimidade chega sempre ao limite quando o perdão é necessário. Pelo simples fato de não sermos perfeitos, cedo ou tarde revelaremos nossa face sombria e acabaremos fazendo ou deixando de fazer algo que ferirá profundamente as pessoas que amamos. Quando o relacionamento chega nesse limite, temos apenas duas opções: desistir do relacionamento ou perdoar.

Jesus ensinou que o caminho da restauração de um relacionamento no qual duas pessoas se feriram é o perdão.

Perdoa as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores.

[Mateus 6.12]

Quem não está disposto ou disposta a perdoar caminhará rumo à solidão. Pular de relacionamento superficial para outro não é uma alternativa aceitável. Hans Burki disse que “mais do mesmo nos deixa no mesmo lugar”. Isso quer dizer que, para crescermos, precisamos ir mais fundo em nossos relacionamentos de afeto e amor. Pessoas que abandonam pessoas quando a relação exige perdão permanecerão infantis e imaturas. E, ao final, acabarão sozinhas, pois jamais encontrarão alguém perfeito, em cuja presença e comunhão não seja necessária a experiência do perdão.

 

Moeda de grande valor

Pessoas precisam de Deus. Pessoas precisam de pessoas. Essas são duas faces da moeda chamada relacionamentos. Acredito que a qualidade de sua vida está na proporção direta da qualidade das pessoas com quem você desenvolve relacionamentos íntimos e da qualidade dos relacionamentos que desenvolve com elas.

 

Ed René Kivitz

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